Paradigma
Quanto do seu comportamento cotidiano é consciente?
Com que frequência você julga as pessoas ao seu
redor?
O que é “liberdade” pra você?
Não é fácil ir além do “piloto automático” que nos
direciona a uma visão de mundo egocêntrica. Não é fácil ir além desse
referencial único e absoluto chamado “Eu”.
Medo, desdém, frustração e obsessão alimentam o
culto ao Eu e criam demanda para as ilusões que nos vendem como liberdade.
Quer saber dos outros tipos de liberdade? Há um em
especial que desperta a atenção de poucos, tamanha a influência de uma cultura
que nos enfia a necessidade de sucesso, vitória e ostentação goela abaixo. Uma
liberdade que requer atenção, consciência, disciplina, esforço e, acima de
tudo, capacidade de amar e se sacrificar pelo próximo — em pequenos gestos, da
forma mais discreta e humilde possível.
Já ouviu falar em paradigma? Neste texto
sobre quebra de paradigmas, vou usá-lo com o mesmo sentido de visão de mundo:
as “lentes” que escolhemos para enxergar e moldar a realidade. Em resumo,
trata-se de uma abstração, ou melhor, um exercício de liberdade tão poderoso
quanto sutil.
Se
você já passou por alguma quebra de paradigmas sabe do impacto que isso tem no
que chamamos de “certeza” — não a do 2+2=4, mas aquela que se desfaz quando um
discurso, um parágrafo ou um punhado de palavras transformam seu mundo inteiro
num piscar de olhos. Dito isso, posso garantir que minha intenção não é mudar
sua visão de mundo, mas lembrar do quão difícil é enxergar as entrelinhas da
vida, seja você intelectual ou analfabeto funcional.
Tudo
começou quando me dei conta da fragilidade do que antes considerava
inquestionável e ousei ir além do meu modo automático de pensar. Desde então,
passei a apreciar o caráter mutável da minha realidade individual. Já dizia
Descartes: “Penso, logo existo”. E a única existência que conheço sempre
confirmou minha crença de que sou a pessoa mais importante do mundo, o centro
do Universo.
O Eu paradigmático
Ora,
isso não deveria ser nenhuma surpresa, certo? Toda e qualquer experiência,
desde a minha primeira lembrança, sempre teve uma única referência: Eu — sempre
remete a algo que vi, participei, aconteceu comigo ou com os outros ao meu
redor. Nem os pensamentos e sentimentos de outras pessoas fogem à regra, pois
têm que chegar até mim, o receptor absoluto, seja qual for o meio de
comunicação utilizado. Do contrário, não são reais. Afinal, só tenho contato
imediato com meus próprios pensamentos e sentimentos. Todos nós temos essa
sensação, é inerente ao que chamamos de consciência, algo tão evidente que nem
nos damos ao trabalho de falar sobre o assunto.
É
necessária uma reflexão sobre nossas experiências de vida cotidianas, partindo
da ideia de que nossas subjetividades têm a mesma origem e convergem em alguns
pontos — quem já se identificou profundamente com as ideias ou sentimentos de
alguém sabe do que estou falando — é que temos algo em comum.
Pensemos
sobre a importância de quebrar paradigmas, algo que demanda tamanho esforço.
Não é fácil enxergar as coisas sob outra perspectiva, aceitar novas ideias e ir
além da inércia que nos consome diariamente em forma de rotina. Não é fácil ir
além do “piloto automático” que nos direciona a uma visão de mundo egocêntrica.
Não é fácil ir além desse referencial único e absoluto chamado “Eu”. Não é nada
fácil.
Veja
o João, por exemplo, um cidadão comum que se viu pressionado a adotar um
determinado estilo de vida assim que recebeu seu diploma universitário — como
muitos de nós. Ele acorda cedo todos os dias e trabalha mais de 10 horas para
manter seu emprego. No fim do expediente, já estressado e cansado, ele só pensa
em chegar em casa, comer, relaxar e dormir um pouco mais pra compensar o sono
acumulado ao longo da semana. Ele sabe que precisa levantar bem disposto para
enfrentar as mesmas coisas no dia seguinte.
Apesar
de ser um cara legal, João se vê constantemente irritado pelo excesso de
pessoas, pelo trânsito, pela lerdeza dos idosos, pela falta de respeito de
tanta gente egoísta, pela hiperatividade das crianças, pelo tamanho das filas e
pela falsidade dos relacionamentos no trabalho. Enfim, ele odeia tudo e todos
que insistem em atrapalhar seus desejos, planos e expectativas.
Para
se livrar da inércia, cada uma dessas pequenas situações que compõem uma rotina
infernal requer certa dose de esforço. Se João não escolher conscientemente uma
outra maneira de interpretar esses eventos, pode apostar, voltará a se sentir
irritado e infeliz. Sei disso porque comigo funciona da mesma forma. Quando o
centro do Universo sou Eu, é natural que só pense em mim e tenha a nítida
impressão de que o mundo gira em torno das minhas necessidades, meus horários,
minhas opiniões, meus valores e meu cansaço. É natural que encare outras
pessoas como obstáculos, meros figurantes no espetáculo da minha própria
existência.
Por
outro lado, se assumo uma versão “socialmente correta” do paradigma anterior,
talvez deixe de focar nas pessoas e comece a julgar suas ideologias e crenças.
Afinal, são todos preguiçosos, corruptos, individualistas, alienados e burros.
Tenho certeza que continuarão passivos como gado, indiferentes aos problemas
que só Eu pareço enxergar. Me vejo pensando: “Meu Deus, como podem ser tão
cegos?”
É
preciso reconhecer que optar pelo caminho mais fácil, aceitar tudo sem
questionar e agir sem pensar são apenas reflexos da inércia disfarçados de
“escolhas”. Quanto mais eu sigo a “receita” para o sucesso, maior será minha
expectativa de que o mundo cumpra suas promessas e me recompense. Assim,
consumido pelos meus próprios problemas, deixo de enxergar todo o resto. E
quando estou a ponto de desistir dos outros, porque é mais fácil começar do
zero já que nada vai mudar, percebo que é possível pensar diferente. Então,
faço um esforço para me lembrar da humanidade e dos desafios de cada pessoa que
julguei e condenei. Mas não pense que estou aqui para dar lição de moral ou
mostrar como viver a vida. Ninguém espera que você mude totalmente de uma hora
pra outra, porque é difícil, eu sei. Requer muita vontade, principalmente
naqueles dias em que tudo dá errado. E, se você é como eu, tem dias que
simplesmente não vai nem querer tentar.
Felizmente,
na maioria das vezes que você estiver consciente o suficiente para escolher,
será capaz de enxergar a senhora “lerda” como uma avó carinhosa, lutando para
conviver com a dor de um corpo frágil que já não se movimenta mais como antes;
enxergar o “babaca” que furou a fila como um pai preocupado, apressado para não
perder o trabalho de merda porque sua família depende disso; enxergar o
“pirralho” insuportável como uma criança carente, curiosa e condicionada a
fazer birra para receber atenção e cuidado dos pais.
Claro,
é bem provável que nada disso seja verdade, mas tudo depende da forma como você
escolhe enxergar. A tendência é aceitar a primeira versão que vem à cabeça,
pois aprendemos a julgar desde cedo, mas corre-se o risco de acabar como o
João: solitário, infeliz e cercado de “idiotas”.
Portanto,
que tal dar uma pausa e tentar conceber outras alternativas? A verdade é que
você é capaz de escolher o que quer enxergar ou, segundo um dos princípios da
Comunicação Não-Violenta, observar sem julgar. Outra verdade é que você pode
dar o significado que quiser às coisas, e aqui poderia citar vários autores
existencialistas, mas fico com Joseph Campbell:
A vida não tem
sentido por si só, nós é que atribuímos significado. O sentida da vida é o que
você quiser que seja.
Isso
me faz lembrar de algo com inúmeros significados: “Deus”. Não por acaso, essa
palavrinha mágica demonstra perfeitamente o nosso poder de escolha (livre
arbítrio), pois sempre se adapta ao significado que quisermos: Jesus, Alá,
Oxalá, Buda, Universo, Mãe Natureza, Destino, etc. Ironicamente, nem os ateus
escapam de “Deus”, visto que a única diferença é o “formato” escolhido:
dinheiro, beleza, conhecimento, poder — a lista é enorme. E o que antes chamei
de “piloto automático” ou “inércia” agora pode ser traduzido como “ter fé”
(cultivar verdades inquestionáveis) e “viver para adorar Deus” (ser consumido
por um único aspecto da vida).
Muitos
nem percebem o quanto essa combinação entre piloto automático e adoração pode
ser perigosa. Se você adora o dinheiro, nunca terá o bastante. Se você adora a
beleza, nunca estará satisfeito com a própria aparência, mesmo fazendo de tudo
para se manter jovem. Se você adora parecer inteligente, continuará se sentindo
ignorante e inseguro, alguém que não sabe nada sem a ajuda da internet. Se você
adora o poder, nunca deixará de ter medo, e nenhum poder será o bastante para
garantir a sua autoridade. E não adianta negar, sabemos que tudo isso é
verdade.
O
segredo é não deixar que esse tipo de comportamento, automático e obsessivo, se
esconda nas entrelinhas da vida e se torne inconsciente. Esse é o tipo de coisa
que nos engole pouco a pouco e permite que um determinado paradigma crie
raízes. Assim, o mundo atual se aproveita dessa inércia como combustível para
sobreviver. Medo, desdém, frustração e obsessão alimentam o culto ao Eu e criam
demanda para as ilusões que nos vendem como liberdade.
Quer
saber dos outros tipos de liberdade? Há um em especial que desperta a atenção
de poucos, tamanha influência de uma cultura que nos enfia sucesso, vitória e
ostentação goela abaixo. Uma liberdade que requer atenção, consciência,
disciplina, esforço e, acima de tudo, capacidade de amar e se sacrificar pelo
próximo — em pequenos gestos, da forma mais discreta e humilde possível. Isso é
o que considero libertador, pois todo o resto te condena a uma prisão chamada
“Eu”, construída pela inconsciência de possibilidades, pensamentos automáticos
e comportamentos guiados pela inércia.
Veja
bem, nada do que falei é glorioso, prazeroso ou tentador, nem deve ser
interpretado como sermão ou julgamento. Não se trata de moral, religião,
ideologia ou busca pela verdade, mas de um constante esforço em se manter
consciente, reconhecer o que é essencial e assumir as próprias escolhas. Em
suma, a quebra de paradigmas pode ser um fenômeno inicialmente doloroso, mas
igualmente libertador.

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