Nascer
Há na noite silenciosa e úmida, um suspiro de alma, profundo, lento e inseguro. É quase um alivio sentir a exaustão do corpo, exaurido, ela se prostra e se entrega.
Seus olhos perdem se no infinito vazio, preso em lembranças de uma infância roubada. Ao lado deste corpo, um par de mãos, risca o chão com tinta invisível.
Dorme-se sem sono, mexe-se parado, desassossegada pela quietude deste abandono.
Mas, logo o fardo daquela empreitada desponta e a realidade é despertada na dor da menina-mulher que, deitada no piso do banheiro, nua, inicia seu trabalho de parto. Ela se contorce, revirada pelas dores que soma, alarga e atinge seu clímax na virilha.
Em minutos a bolsa se rompe por entre suas pernas e deixa no chão sua marca de passagem.
Se antes, a posição de cócoras lhe dava algum conforto, agora era melhor ficar esparramada pelo ladrilho encardido e de pernas abertas. A dor aumenta minuto a minuto, junto ao suor que lhe escorre pela face pálida.
Olhos esbugalhados correm por azulejos velhos, garatujados por nomes impróprios e recados de amor, um espelho fosco e envelhecido, estava estampado por desenhos e palavras chulas, ocupa o centro da parede, abaixo dele uma pia com gabinete enferrujado, ao lado do vaso sanitário que lhe servia de apoio nas primeiras contrações, mas assim que a dor latejante lhe roubou as ultimas forças, só conseguiu se dobrar em busca de alivio a dor que castigava seu corpo descarnado.
As contrações surgem cada vez, mais carregadas de sofrimento, até que em um ultimo e insuportável esforço que lhe toma a visão, seus membros são desconjuntados até expulsar o que lhe provoca tanto sofrimento.
Exaurida e sem fôlego, a moça suarenta, observa uma criança sendo repelida das suas entranhas.
—Uma menina. Pensou. Enquanto as lagrimas caiam pela face pálida.
Há três coisas que não se diz, mas que é importante saber quando se está desamparada de tudo; — uma criança, nunca é apenas mais uma boca para comer, é também alguém que requer tempo, cuidados e teto, exatamente o que lhe faltava.
A mulher que dera à luz, dentro da estação de trem, no chão do banheiro, era um sem teto. Ela descansa, seu corpo exige reparo e sono, que vem e lhe toma pela mão.
Acordou com o choro do bebê, por volta das quatro da manhã, sabia que precisava alimenta-la, devia deixá-la sugar seu leite.
Depois de amamentar o bebê, a jovem mãe rasga o cordão umbilical que ainda unia mãe e filha e, mesmo arrebatada pelo esforço em parir, se põe de pé ao lado da pia, com as mãos em forma de concha, despeja água pelo corpo, lavando o sangue incrustado em sua pele.
Depois de colocar de volta suas roupas, ela enrola o bebê em uma toalha e com cuidado, ajeita-a na mochila, estava pronta para seguir seu caminho.
Sua jornada naquele ambiente fétido já se consumara, era o momento de voltar ao mundo hostil e gelado que habitava.
Sentiu em seu estomago, pontadas que a dividia entre a fome e as dores do parto.
Já do lado de fora da estação, envolta pela escuridão que tomava conta da madrugada, a mulher de rosto pálido, ajeita a mochila-berço-de-bebê em seus ombros e segue com passos trôpegos na direção leste da cidade. Andou por vários quarteirões até alcançar a rua da catedral.
Primeiro precisava achar algo para colocar o bebê dentro, uma caixa grande seria o suficiente para deixar o bebê acomodado tempo suficiente para que seu choro despertasse as irmãs caridosas que viviam na igreja.
A moça magricela já estivera naquela parte da cidade, três anos antes tivera seu primeiro bebê, um menino sorridente e cabeludo, havia nascido debaixo do viaduto, no centro expandido. Uma velha senhora ajudou-a por o menino no mundo e sugeriu a catedral como uma opção melhor que o frio cortante e a selvageria das ruas.
Agora, parada na lateral da nave principal da igreja, a mulher-menina-mãe, retira dos ombros sua carga viva, que com olhos miúdos olha sua face. Por um breve momento a mãe deixa seus olhos se conectarem como se alguma energia fosse ser transmitida através do contato ocular.
A calma do bebê lhe deu coragem para pegá-la no colo e apertá-la contra seu corpo trêmulo e frágil. Ficaram nesse contato por alguns minutos, até que seus pés reclamaram do peso e de todo esforço daquela noite.
De volta à vida real, apanhou a caixa que encontrara na rua, forrou com roupas velhas seu interior e a seu modo, enxergou um berço.
Ao pegar o nenê novamente, seu dedo tocou a mão diminuta, enrugada e pálida daquela menininha que saiu do seu ventre.
Por puro reflexo, a pequenina mão agarrou seu dedo com firmeza, como soubesse que aquela poderia ser a primeira e ultima vez.
A jovem mãe olhou demoradamente para sua criança e sentiu ser invadida pela presença maternal que à milhares de gerações, foram sendo desenvolvida dentro de cada mulher e, de olhos fechados, chorou silenciosamente.
O dia começava a clarear as torres da igreja, sombras bruxuleantes dissipavam-se à medida que o novo alvorecer ganha espaço nas ruas friorentas e sujas.
As portas de ferro dos comércios começavam a ser erguidas, dando vida à velha cidade de São Paulo.
Uma pequena porta lateral da igreja, dá passagem a uma freira, que todos os dias no mesmo horário, vinha acolher os recém-nascidos, depositados na frente da igreja.
Seus lábios pronunciaram uma pequena prece de agradecimento pelo milagre do novo dia e por não ter nenhum bebê na porta.
Ao se virar para voltar ao calor da igreja, seus olhos avistaram uma mãe com seu precioso bebê nos braços se distanciando, caminhando ao encontro de uma nova vida de um novo amanhecer.
Fim
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